Thursday, December 29, 2011
Monday, December 26, 2011
Alfazemas
Vou
dormir sem outra intenção
além de calar
este cheiro de cânfora noturno
da alma . . .
Katia Sebastiani
Tuesday, December 20, 2011
Friday, December 16, 2011
Alfazema
Um pouco mais de sol , eu era brasa ,
Um pouco mais de azul , eu era além.
Para atingir , faltou-me um golpe de asa …
Se ao menos eu permanecesse aquém …
/
De tudo houve um começo … e tudo errou …
Ai a dor de ser , quase , dor sem fim …
Eu falhei-me entre os mais , falhei em mim ...
Asa que se elançou mas não voou …
Momentos de alma que , desbaratei …
Templos aonde nunca pus um altar …
Rios que perdi sem os levar ao mar …
Ânsias que foram mas que não fixei …
Se me vagueio , encontro só indícios …
Ogivas para o sol , vejo-as cerradas .
E mãos de herói , sem fé , acobardadas ,
Puseram grades sobre os precipícios …
Num ímpeto difuso de quebranto ,
Tudo encetei e nada possuí …
Hoje , de mim , só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi …
Um pouco mais de sol , e fora brasa ,
Um pouco mais de azul , e fora além .
Para atingir faltou-me um golpe de asa …
Se ao menos eu permanecesse aquém …
Mário de Sá Carneiro
Friday, December 09, 2011
Friday, December 02, 2011
Alfazema
Noite fora , noite fora .
Acordaremos , já sei , transparentes e sábios ,
do outro lado da criação do mundo . . .
Uma mão presa à luz outra nas trevas ,
um só tronco de chamas , uma asa .
António Franco Alexandre
Friday, November 25, 2011
violetas
Fernando Pessoa inventava amigos porque
[ assim dizia ]
não tinha amigos verdadeiros .
Nós não criamos amigos porque os temos
reais , concretos e
banais .
Mas inventamos o amigo no amigo ,
o amado no amado ,
e sobre essas ficcões fazemos versos .
Todo aquele com quem algo dividimos ,
é para nós só o que dele supomos
[ ou sonhamos ]
ou o que nele vemos e amamos .
De como o fingimento é para todos ,
uma arte involuntária !
Luisa Freire
Friday, November 18, 2011
Alfazema .
Cala os olhos , vagabundo . . .
Não me digas
que há estradas no mundo
sem urtigas.
Não me contes
que nascem astros nos vales
para além dos horizontes.
Não me fales de haver poentes
com as cores ardentes
das penas de um galo.
Não me tentes , vagabundo.
Não quero ver o mundo .
Prefiro imaginá-lo .
José Gomes Ferreira
Friday, November 11, 2011
violetas
Dois cavalos a par eu conduzia . . .
Não me guiava a mim , mas meus cavalos .
E no país do espanto e do tumulto
Em mim se desuniu , o que eu unia .
Sofia de Mello Breyner
Friday, November 04, 2011
Alfazema
No fim tu hás de ver que as coisas mais leves são as únicas
que o vento não conseguiu levar . . .
um estribilho antigo ,
um carinho no momento preciso ,
o folhear de um livro de poemas ,
o cheiro que tinha um dia , o próprio vento ...
Mario Quintana
Friday, October 28, 2011
violetas
Não tenho pressa .
Pressa de quê ?
Não têm pressa o sol e a lua ... estão certos .
Ter pressa é crer que a gente passa adiante das pernas ,
Ou que , dando um pulo , salta por cima da sombra.
Não ... não sei ter pressa .
Se estendo o braço , chego exactamente aonde o meu braço chega .
Nem um centímetro mais longe .
Toco só onde toco , não aonde penso .
Só me posso sentar aonde estou .
E isto faz rir como todas as verdades absolutamente verdadeiras ,
Mas o que faz rir a valer é que nós pensamos sempre noutra coisa ,
E vivemos vadios da nossa realidade .
E estamos sempre fora dela porque estamos aqui .
Alberto Caeiro _ Poemas Inconjuntos _
Pressa de quê ?
Não têm pressa o sol e a lua ... estão certos .
Ter pressa é crer que a gente passa adiante das pernas ,
Ou que , dando um pulo , salta por cima da sombra.
Não ... não sei ter pressa .
Se estendo o braço , chego exactamente aonde o meu braço chega .
Nem um centímetro mais longe .
Toco só onde toco , não aonde penso .
Só me posso sentar aonde estou .
E isto faz rir como todas as verdades absolutamente verdadeiras ,
Mas o que faz rir a valer é que nós pensamos sempre noutra coisa ,
E vivemos vadios da nossa realidade .
E estamos sempre fora dela porque estamos aqui .
Alberto Caeiro _ Poemas Inconjuntos _
Friday, October 21, 2011
Alfazema
Viver sempre também cansa !
E obrigam-me a viver até à morte .
Pois não era mais humano
Morrer por um bocadinho ,
De vez em quando ,
E recomeçar depois ,
Achando tudo mais novo ?
Ah ! Se eu podesse suicidar-me por seis meses . . .
/
José Gomes Ferreira
Ou até um pouco mais . . . . . .
Saturday, October 15, 2011
Violetas
Tu já me arrumaste no armário dos restos ,
eu já te guardei na gaveta dos corpos perdidos ,
e
das nossas memórias começamos a varrer
as pequenas gotas de felicidade que já fomos .
Mas no tempo subjectivo ,
tu és ainda o meu relógio de vento ,
a minha máquina aceleradora de sangue .
E por quanto tempo ainda ,
as minhas mãos serão para ti
o nocturno passeio do gato no telhado ?
Isabel Meyrelles
Friday, October 07, 2011
Alfazema
Contrariamente aos outros pássaros , o melro não canta ... ri-se.
O melro é uma gargalhada semovente
voando entre as moitas ,
dexando farrapos de riso a esvoaçar nos ramos.
Pois bem. Alguém que odeia o riso
encerrou o melro na gaiola.
Alguém a quem o riso à solta fazia especie
quis ter aquele riso encarcerado ,
à mão de semear.
Alguém capturou o melro e o meteu ,
embrulhado no negrume da plumagem ,
na gaiola , e pôs a gaiola na varanda .
Por maior escárnio , já se vê.
Nos primeiros tempos o melro não cantou
_ quero dizer , o melro não se riu .
Quem quer perde o sentido de humor
cerrado numa gaiola.
Mas com o tempo , o silêncio foi-lhe pesando
à medida que ímpetos de riso borbulhavam
com crescente intensidade junto ao bico .
Até que o riso explodiu ,
saltou fora como a rolha da garrafa de champanhe ,
e eis a gaiola cheia de canto _ perdão , de riso .
Nisto , os melros são como as outras aves ,
soltam a voz para dizer ... este lugar é meu ,
quem quiser disputar-mo tem que se haver comigo .
Dizem-no geralmente a propósito de lugares amplos ,
onde caibam voos inteiros e que valha
a pena defender de intrometidos .
Mas o melro na gaiola aprende depressa
a proporcionar o voo e a voz ao espaço que tem .
O impulso é maior do que o espaço disponível .
E canta _isto é , ri-se , como se fosse dono
duma fatia de mundo razoável.
Para o melro ,
a gaiola é mesmo assim um espaço
que vale bem a pena defender a gargalhadas .
Lição a reter ... as expectativas
são um lugar
só aparentemente degradável .
Podem sempre encolher , mas nunca morrem .
E todavia ,
as risadas do melro na gaiola
fazem-se rasgões por dentro
como se em vez de riso fossem pranto .
Porque eu sou como ele ...
alguém me reduziu o tamanho do quintal ,
até o quintal ficar isto que se vê ,
e eu a defendê-lo a golpes de riso.
Como o melro ... tal e qual !
A M.Pires Cabral
Friday, September 30, 2011
Violetas
Porque vieste ?
Não chamei por ti !Era tão natural o que eu pensava ,
Nem triste , nem alegre , de maneira
Que pudesse sentir a tua falta ...
E tu vieste ,
Como se fosses necessária !
Poesia
nunca mais venhas assim ...
Pé ante pé , cobardemente oculta
nas ideias mais simples .
Nos mais ingénuos sentimentos ...
Um sorriso , um olhar , uma lembrança ...
_ Não sejas como o Amor !
É verdade que vens , como se fosses
uma parte de mim que vive longe ,
Presa ao meu coração
Por um elo invisível .
Mas não regresses mais sem que eu te chame ,
_ Não sejas como a Saudade !
De súbito , arrebatas-me , através
De zonas espectrais , de ignotos climas .
E , quando desço à vida, já não sei
Onde era o meu lugar ...
Poesia
nunca mais venhas assim .
_ Não sejas como a Loucura !
Embora a dor me fira , de tal modo
Que só as tuas mãos saibam curar-me ,
Ou ninguém , se não tu , possa entender
O meu contentamento ...
Não venhas nunca mais sem que eu te chame .
_ Não sejas como a Morte !
Carlos Queirós
Saturday, September 24, 2011
Alfazema
Não fugir.
Suster o peso da hora , sem palavras minhas e sem os sonhos
fáceis , e sem as outras falsidades .
Numa espécie de morte mais terrível
ser de mim despojado , ser
abandonado aos pés , como um vestido .
Sem pressa atravessar a asfixia .
Não vergar .
Suster o peso da hora
Até soltar sua canção intacta ...
Cristovam Pavia
Suster o peso da hora , sem palavras minhas e sem os sonhos
fáceis , e sem as outras falsidades .
Numa espécie de morte mais terrível
ser de mim despojado , ser
abandonado aos pés , como um vestido .
Sem pressa atravessar a asfixia .
Não vergar .
Suster o peso da hora
Até soltar sua canção intacta ...
Cristovam Pavia
Friday, September 16, 2011
Violetas
Sozinho de brancura , eu vago ...
Asa
de rendas que entre cardos só flutua ...
Triste de mim , que vim de alma prà rua ,
E nunca a poderei deixar em casa ...
Mário de Sá Carneiro
Saturday, September 10, 2011
Alfazema
Tenho quarenta janelas,
nas paredes do meu quarto ,
sem vidros nem bambinelas ,
posso ver através delas ,
o mundo em que me reparto.
Por uma entra a luz do sol ,
por outra a luz do luar ,
por outra a luz das estrelas ,
que andam no céu a rolar.
Por esta entra a Via Láctea ,
como um vapor de algodão ,
por aquela a luz dos homens ,
pela outra a escuridão.
Pela maior entra o espanto ,
pela menor a certeza ,
pela da frente a beleza ,
que inunda de canto a canto.
Pela quadrada entra a esperança ,
de quatro lados iguais
quatro arestas , quatro vértices ,
quatro pontos cardeais.
Pela redonda entra o sonho ,
que as vigias são redondas ,
e o sonho afaga e embala ,
à semelhança das ondas.
Por além entra a tristeza ,
por aquela entra a saudade ,
e o desejo, e a humildade ,
e o silêncio, e a surpresa.
E o amor dos homens , e o tédio ,
e o medo , e a melancolia ,
e essa fome sem remédio ,
a que se chama poesia .
E a inocência , e a bondade ,
e a dor própria , e a dor alheia ,
e a paixão que se incendeia ,
e a viuvez , e a piedade.
E o grande pássaro branco ,
e o grande pássaro negro ,
que se olham obliquamente ,
arrepiados de medo .
Todos os risos e choros ,
todas as fomes e sedes ,
tudo alonga a sua sombra ,
nas minhas quatro paredes.
Oh janelas do meu quarto ,
que vos pudesse rasgar ,
com tanta janela aberta ,
falta-me a luz e o ar .
António Gedeão
Bernard Scholl
Monday, September 05, 2011
Violetas
Um dia quebrarei todas as pontes
Que ligam o meu ser, vivo e total ,
À agitação do mundo do irreal ,
E calma subirei até às fontes
Irei até às fontes onde mora
A plenitude, o límpido esplendor
Que me foi prometido em cada hora ,
E na face incompleta do amor
Irei beber a luz e o amanhecer,
Irei beber a voz dessa promessa
Que às vezes como um vôo me atravessa,
E nela cumprirei todo o meu ser.
Sophia de Mello Breyner
Thursday, September 01, 2011
Alfazema
Venham leis e homens de balanças
mandamentos d'aquém e d'além mundo.
Venham ordens , decretos e vinganças ,
desça em nós o juízo até ao fundo .
/
Mas quando nos julgarem bem seguros ,
cercados de bastões e fortalezas ,
hão-de ruir em estrondo os altos muros ,
e chegará o dia das surpresas .
José Saramago _ Os Poemas Possíveis , 1966 _
Sunday, August 28, 2011
Violetas
Pela verdade , pelo riso , pela luz, pela beleza ,
Pelas aves que voam no olhar de uma criança,
Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza ,
Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança .
Pela branda melodia do rumor dos regatos .
Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia ,
Pelas flores que esmaltam os campos , pelo sossego dos pastos ,
Pela exactidão das rosas , pela Sabedoria ,
Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,
Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos,
Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,
Pelos aromas maduros de suaves outonos,
Pela futura manhã dos grandes transparentes,
Pelas entranhas maternas e fecundas da terra,
Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas
Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,
Eu te conjuro ó paz , eu te invoco ó benigna ,
Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz.
Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira ,
Com o teu esconjuro da bomba e do algoz,
Abre as portas da História ,
deixa passar a Vida !
Natália Correia
Sunday, August 07, 2011
Saturday, August 06, 2011
Violetas
Se o meu desgosto é ser , na grande Teia ,
mensagem virtual ou sopro vago ,
talvez me qeiras tu dar o teu rosto,
e eu , no teu corpo me transforme , em alma .
António Franco Alexandre
Wednesday, August 03, 2011
Alfazema
Vem.
Conversemos através da alma.
Revelemos o que é secreto aos olhos e ouvidos.
Sem exibir os dentes,
sorri comigo, como um botão de rosa.
Entendamo-nos pelos pensamentos,
sem língua, sem lábios.
Sem abrir a boca,
contemo-nos todos os segredos do mundo,
como faria o intelecto divino.
Fujamos dos incrédulos
que só são capazes de entender
se escutam palavras e vêem rostos.
Ninguém fala para si mesmo em voz alta.
Já que todos somos um,
falemos desse outro modo.
Como podes dizer à tua mão ... _ toca _ ,
se todas as mãos são uma ?
Vem , conversemos assim.
Os pés e as mãos conhecem o desejo da alma.
Fechemos pois a boca e conversemos através da alma.
Só a alma conhece o destino de tudo, passo a passo.
Vem, se te interessas , posso mostrar-te .
Rumi
Saturday, July 30, 2011
VIoletas
Diz- me devagar coisa nenhuma ,
assim a só presença com que me perdoas esta fidelidade ao meu destino .
Quando assim não digas é por mim que o dizes .
E os destinos vivem - se como outra vida .
Ou como solidão .
E quem lá entra ? E quem lá pode estar
mais que o momento de estar só comigo ?
Diz - me assim devagar , coisa nenhuma ...
o que à morte se diria , se ela ouvisse ,
ou se diria aos mortes , se voltassem .
Jorge de Sena _ Quinze poetas portugueses do século XX _
Thursday, July 21, 2011
Alfazema
Eu queria escrever-te uma carta
amor ,
uma carta que dissesse
deste anseio de te ver ,
deste receio de te perder ,
deste mais que bem querer que sinto
deste mal indefinido que me persegue
desta saudade a que vivo todo entregue . . .
Eu queria escrever-te uma carta
amor,
uma carta de confidências íntimas,
uma carta de lembranças de ti ,
de ti ...
dos teus lábios vermelhos como tacula
dos teus cabelos negros como dilôa
dos teus olhos doces como macongue
dos teus seios duros como maboque
do teu andar de onça
e dos teus carinhos
que maiores não encontrei por aí . . .
Eu queria escrever-te uma carta
amor ,
que recordasse nossos dias na capôpa
nossas noites perdidas no capim
que recordasse a sombra que nos caía dos jambos
o luar que se coava das palmeiras sem fim
que recordasse a loucura da nossa paixão
e a amargura da nossa separação.
Eu queria escrever-te uma carta
amor ,
que a não lesses sem suspirar ,
que a escondesses de papai Bombo
que a sonegasses a mamãe Kiesa .
que a relesses sem a frieza do esquecimento .
uma carta que em todo o Kilombo
outra a ela não tivesse merecimento . . .
Eu queria escrever-te uma carta
amor ,
uma carta que ta levasse o vento que passa
uma carta que os cajus e cafeeiros , que as hienas e palancas , que os jacarés e bagares
pudessem entender
para que se o vento a perdesse no caminho , os bichos e plantas compadecidos do nosso pungente sofrer,
de canto em canto
de lamento em lamento
de farfalhar em farfalhar ,
te levassem puras e quentes , as palavras ardentes , as palavras magoadas
da minha carta
que eu queria escrever-te amor .
Eu queria escrever-te uma carta . . .
Mas , ah , meu amor , eu não sei compreender por que é , porque é , meu bem
que tu não sabes ler ,
e
eu , oh , desespero , não sei escrever , também !
António Jacinto
Thursday, July 14, 2011
Violetas
Não deram resultado todas as esperanças,
que
eu tinha posto nos dias de hoje !
Mas amanhã , se Deus quiser ,
logo de manhã , muito cedinho,
todas as esperanças começam outra vez , à procura da
mimha vez !
Almada Negreiros
Friday, July 08, 2011
Alfazema
Não
há , duas folhas iguais em toda a criação.
Ou nervura a menos , ou célula a mais , não há , de certeza , duas folhas iguais.
Limbo todas têm , que é próprio das folhas.
Pecíolo algumas , bainha nem todas.
Umas são fendidas , crenadas , lobadas , inteiras , partidas ,
singelas , dobradas.
Outras acerosas , redondas , agudas , macias , viscosas , fibrosas , carnudas.
Nas formas presentes , nos actos distantes , mesmo semelhantes são sempre diferentes.
Umas vão e caem no charco cinzento , e lançam apelos nas ondas que fazem.
Outras vão e jazem sem mais movimento .
Mas outras não jazem , nem caem , nem gritam ... apenas volitam nas dobras do vento.
É dessas que eu sou .!
António Gedeão
Friday, July 01, 2011
Violetas
Eu trago-te nas mãos o esquecimento ,
Das horas más que tens vivido , amor !
E para as tuas chagas o unguento
Com que sarei a minha própria dôr .
Os meus gestos são ondas de sorrento ,
Trago no nome as letras de uma flor .
Foi dos meus olhos garços que um pintor
Tirou a luz para pintar o vento ...
Dou-te o que tenho ... o astro que dormita ,
O manto dos crepúsculos da tarde,
O sol que é d'oiro, a onda que palpita,
Dou-te comigo o mundo que Deus fez !
Eu sou aquela de quens tens saudade ,
A princesa do conto ... " Era uma vez ... "
Florbela Espanca
Friday, June 24, 2011
Alfazema
Vós que lá do vosso Império
prometeis um mundo novo ,
calai-vos , que pode o povo
qu'rer um mundo novo a sério.
Que importa perder a vida
em luta contra a traição ,
se a razão mesmo vencida ,
não deixa de ser razão .
P'ra mentira ser segura
e atingir profundidade
tem de trazer à mistura
qualquer coisa de verdade.
Há luta por mil doutrinas .
Se querem que o mundo ande ,
Façam das mil pequeninas
Uma só doutrina grande .
Sem que discurso eu pedisse,
ele falou, e eu escutei.
Gostei do que ele não disse ,
do que disse não gostei.
Nas quadras que a gente vê ,
quase sempre o mais bonito
está guardado pr'a quem lê
o que lá não está escrito !
António Aleixo _ Este livro que vos deixo _
Saturday, June 18, 2011
violetas
Venham leis e homens de balanças ,
mandamentos d'aquém e d'além mundo .
Venham ordens , decretos e vinganças ,
desça em nós o juízo até ao fundo .
Nos cruzamentos todos da cidade
a luz vermelha brilhe inquisidora ,
risquem no chão os dentes da vaidade
e mandem que os lavemos a vassoura.
A quantas mãos existam peçam dedos
para sujar nas fichas dos arquivos .
Não respeitem mistérios nem segredos
que é natural os homens serem esquivos .
Ponham livros de ponto em toda a parte ,
relógios a marcar a hora exacta .
Não aceitem nem queiram outra arte
que a prosa de registo , o verso acta.
Mas quando nos julgarem bem seguros ,
cercados de bastões e fortalezas ,
hão-de ruir em estrondo os altos muros
e chegará o dia das surpresas .
José Saramago _ Os Poemas Possíveis , 1966 _
Sunday, June 12, 2011
alfazema
Pinta primeiro uma gaiola
com a porta aberta .pinta a seguir
qualquer coisa bonita ,
qualquer coisa simples ,
qualquer coisa bela ,
qualquer coisa útil ,
para o pássaro.
Agora encosta a tela a uma árvore
num jardim
num bosque
ou até numa floresta .
esconde-te atrás da árvore
sem dizeres nada ,
sem te mexeres…
às vezes o pássaro não demora ,
mas pode também levar anos
antes que se decida.
Não deves desanimar ,
espera .
espera anos se for preciso .
a rapidez ou a lentidão da chegada
do pássaro não tem qualquer relação
com o acabamento do quadro.
Quando o pássaro chegar ,
se chegar ,
mergulha no mais fundo silêncio .
espera que o pássaro entre na gaiola
e quando tiver entrado
fecha a porta devagarinho .
com o pincel ,
depois ,
apaga uma a uma todas as grades
com cuidado não vás tocar nalguma das penas .
Faz a seguir o retrato da árvore
escolhendo o mais belo dos ramos
para o pássaro .
pinta também o verde da folhagem a frescura do vento
e agora espera que o pássaro se decida a cantar .
se o pássaro não cantar
é mau sinal .
é sinal que o quadro não presta .
mas se cantar é bom sinal ,
sinal de que podes assinar .
então arranca , com muito cuidado ,
uma das penas do pássaro ,
e escreve o teu nome num canto do quadro .
Jacques Prévert
Friday, June 10, 2011
violetas
Mudam-se os tempos , mudam-se as vontades ,
Muda-se o ser, muda-se a confiança .
Todo o Mundo é composto de mudança ,
Tomando sempre novas qualidades.
Continuamente vemos novidades ,
Diferentes em tudo da esperança .
Do mal ficam as mágoas na lembrança ,
E do bem, se algum houve, as saudades.
O tempo cobre o chão de verde manto ,
Que já coberto foi de neve fria ,
E em mim converte em choro o doce canto .
E , afora este mudar-se cada dia ,
Outra mudança faz de mor espanto ...
Que não se muda já como soía.
Luis Vaz de Camões
Tuesday, May 31, 2011
Alfazema
Deito - me tarde
Espero por uma especie de silêncio
que nunca chega cedo
Espero a atenção a concentração da hora tardia
Ardente e nua .
É então que os espelhos acendem o seu segundo brilho
é então que se vê o desenho do vazio
É então que se vê subitamente
a nossa mão poisada sobre a mesa .
É então que se vê passar o silêncio
Navegação antiquíssima e solene .
Sofia de Mello Breyner
Friday, May 27, 2011
Violetas
Se tanto me dói que as coisas passem ,
é porque cada instante em mim foi vivo
na luta por um bem definitivo ,
em que as coisas de amor se eternizassem .
Sofia de Mello Breyner
Friday, May 20, 2011
Alfazema
Andei pelos caminhos da Vida ,
Caminhei pelas ruas do Destino procurando meu signo .
Bati na porta da Fortuna ,
mandou dizer que não estava.
Bati na porta da Fama ,
falou que não podia atender .
Procurei na casa da Felicidade ,
a vizinha da frente me informou
que ela tinha mudado
sem deixar novo endereço .
Procurei a porta da Fortaleza .
Ela me fez entrar ...
deu-me veste nova ,
perfumou-me os cabelos ,
fez me beber de seu vinho.
Acertei meu caminho.
Cora Coralina
Caminhei pelas ruas do Destino procurando meu signo .
Bati na porta da Fortuna ,
mandou dizer que não estava.
Bati na porta da Fama ,
falou que não podia atender .
Procurei na casa da Felicidade ,
a vizinha da frente me informou
que ela tinha mudado
sem deixar novo endereço .
Procurei a porta da Fortaleza .
Ela me fez entrar ...
deu-me veste nova ,
perfumou-me os cabelos ,
fez me beber de seu vinho.
Acertei meu caminho.
Cora Coralina
Thursday, May 12, 2011
Violetas
Nunca compreendi
a caixa de costura.
Testemunha muda
de tardes e gerações ,
poder feminino sobre o útil .
No fundo dos carrinhos e dos dedais ,
devia haver
a esperança.
Pedro Mexia
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